sábado, 18 de junho de 2011

Deixar Obra

Casa de Serralves (cima) e Poundbury (baixo). Fotos: DR
Em maior ou menor grau, quase todos nós temos o desejo de deixar a nossa marca no mundo. Não espanta, por isso, que quem assume cargos públicos, é criador ou possui uma empresa, queira ver o seu nome, e obra, perdurar. É até, diria, legítimo e normal assim ser.
Levada ao extremo, a mistura de mostrar trabalho feito, de preferência grandioso e muito visível, fazer dinheiro em grande quantidade e o mais rapidamente possível, alardear a nossa inimitável assinatura, levam, bastas vezes, à desordem e atropelos urbanísticos que nos rodeiam.
Um passeio pela marginal do Porto, ao longo do rio, espreitando Gaia e, na orla marítima, vislumbrando Matosinhos oferece uma boa panorâmica da confusão e do fervor construtivo vigente das últimas décadas. Descer, ou subir, a Avenida da Boavista pode ser outra hipótese de estudo. Ou, então, andar ao calhas pela cidade e pelos municípios adjacentes.
A conclusão de tais exercícios é sempre a mesma: a identidade da urbe parece, em muitos sítios, ter sida esquecida e o tempo concedido a pensar globalmente a cidade, no curto, médio e longo prazo, pouco. A opção por construir de raiz em vez de reutilizar e remodelar, fez nascer inúmeros blocos de apartamentos, escritórios, hotéis, centros comerciais. Por vezes mesmo ao lado de fiadas de velhas edificações agonizantes. Sendo quase, senão totalmente, inexequível demolir tudo o que está a mais, tem volumetria em excesso (ou em falta), foi erguido no local ou com o enquadramento errado.
Que resta?
Parar o que ainda pode ser parado, não arrancar com determinadas obras – o novo centro de congressos do Palácio de Cristal está nessa categoria. Ao contrário do edifício da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, perfeitamente adaptado ao espaço em que se encontra, a nova construção choca com o que a rodeia –, limitar, onde possível, os estragos no já existente. Se fosse possível tirar tempo para ponderar, olhar a cidade com afecto, tentar obter um modo de interligar e harmonizar, sem descaracterizar, as várias malhas urbanas do Porto e em seu redor.
Querer-se deixar o nosso nome ligado a uma cidade, a uma obra, a um sonho nada tem de errado. Romper com os cânones vigentes e ser-se visionário também não é defeito. Se fosse, não teríamos Serralves, na forma que a conhecemos, nascida da vontade e do desejo de Carlos Alberto Cabral, 2º Conde de Vizela, de transformar várias quintas numa casa modernista com parque a condizer, como um dos símbolos culturais mais prestigiantes da cidade.
Comprada em 1957 por Delfim Ferreira, Conde de Riba d’Ave, a propriedade foi vendida ao Estado, pelos herdeiros de Ferreira, em 1986. Doze anos volvidos e dentro de Serralves, é inaugurado o Museu, de autoria de Siza Vieira. Duas construções separadas totalmente distintas, Casa e Museu, entrosam-se perfeitamente nos jardins e parque.
Um exemplo mais extremo de sonho construtivo e vontade de deixar legado, trata-se de uma vila inteira, é Poundbury, no Ducado da Cornualha. Pertença de Carlos, o Príncipe de Gales, o Ducado tem vindo a colocar em prática diversos planos de crescimento sustentado e agricultura biológicas, dos quais Pondbury é o corolário. Tudo, aí, é construído sob regras severas tendo em visto o manter de um estilo tradicional de vila campestre. Demasiado artificial, deliberadamente espartilhado e muito uniforme? Talvez. Um nem tanto ao mar nem tanto à terra servir-nos-ia perfeitamente.

(Publicado na secção Opinião Porto24 a 16 de Junho de 2011)